Tuesday, May 22, 2007

Sobrenomes

- Então você deve conhecer o Rubens, lembra? Aquele cara famoso na cidade por ter roubado a peruca do prefeito?
- Isso! Claro que sim! Até cheguei a estudar com ele uma época...
- Que coisa, quem diria que a gente cresceu na mesma cidade, conhecia as mesmas pessoas, pena que nunca nos cruzamos... Bom, a conversa está ótima, só tenho que pegar seu sobrenome direitinho, sabe como é, a operadora pede tudo em perfeita ordem para emitir o cartão.
- Ah, sim, claro. O sobrenome é Fritsch. Quer que eu soletre?
- Com certeza.
- F de fantasia, R de rio, I de igreja, S de sol, C de céu e H no final.
- Certo, um minutinho e já volto.

Naquele minuto, André analisou todos os possíveis significados para aquelas palavras, auxiliares no ato de tornar clara a identidade de cada uma das letras do complicado sobrenome. Seriam elas, as máscaras escolhidas por Júlia para definir cada letra, o júri que decidiria pelo futuro dessa conversa, até o momento promissora. Nem sempre se chegava tão longe assim, sempre havia outras preliminares, verdadeiros muros de contenção que só eram atravessados com determinada combinação de fatores.

Naquela tarde, o contato telefônico, que começara em tom formal, típico entre dois robôs britânicos, tinha chegado ao descontraído rumo principalmente pela junção harmoniosa de nome, sobrenome, timbre e algo que André gostava de chamar de personalidade vocal, tão presentes em sua interlocutora. E para completar era um sobrenome difícil, impossível de transcrever pela simples audição da soma de suas letras. Uma mulher complexa, sem dúvida. No entanto, nada disso teria força sem um padrão adequado de significação nas letras daquele sobrenome, que por si só dizia ao operador de telemarketing que aquela era uma mulher com cabelos tingidos de loiro, solteira, elegante e, provavelmente, com padrão de vida elevado. O primeiro nome dela, Júlia, não poderia ser outro. Como seria de se esperar, seu tom de voz era dinâmico, a eloqüência mostrava sua energia e a sua memória privilegiada estava comprovada na facilidade com que lembrou de números de diversos documentos sem hesitação. Ela era extremamente amistosa, mas sem ser vulgar. Deveria ter um sorriso lindo.

Diante de perspectivas tão animadoras, ele relutou em fazer a análise fria, mas essencial que sempre fazia em situações como aquela. Quer dizer, nem sempre. Há tempos atrás, André ignorou solenemente quando Isabel Bordignon concedeu ao G máscara bastante duvidosa. G de gangorra, ela disse. Dessa imprudência se arrependia até hoje, aquela foi a relação mais instável e precária que já experimentara. O pressuposto para que ela estivesse bem era vê-lo mal. Adorava-o ver de cima, majestosa e fazê-lo sentir-se o último dos seres.

Outra vez foi um mísero C. Mesmo com R de romance, E de Europa e L de limpeza, tudo foi abaixo com o maldito C. Fernanda Ciarelli vestiu o C com a perigosa palavra cachorro. E assim foi: a imagem de Nandinha sobre o universo masculino era tão carregada de desconfiança e ódio que André foi obrigado a deixar de andar com amigas, conhecidas e até mesmo primas. Por fim, terminou tudo antes que Fernanda sentisse ciúme de si própria.

Dessa vez não cometeria esse erro. Não pode se esperar muita coisa de quem tem um H no final do nome. Tão previsível, tão inútil. É uma letra quase sem máscaras, tanto que Júlia nem se dava ao trabalho de utilizar uma para identificar sua presença inconfundível. Se ao menos tivesse dito H de humanidade. Mas aí também estaria denunciando falta de inteligência ao não perceber quão supérfluos são quaisquer acessórios que definam essa letrinha medíocre, sem sequer sonoridade própria.

- Infelizmente, senhora, seu cadastro não foi aprovado, tenha um bom dia.
- Espera, espera, André! O que foi que houve!?

Telefone no gancho, os olhos correm em busca de sobrenomes que valham a pena. Beatriz Sulchevskida brilha na lista.

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