Wednesday, May 30, 2007

Maior que as pernas

Não sei bem como começou. A primeira vez que fiz, que eu me lembre, foi no colégio.

Eu não conseguia entender de maneira alguma aquelas contas, aqueles números rabiscados no quadro negro. As aulas se tornavam uma tortura diária. No final do mês, chegava o boletim, horrível, com a nota quatro brilhando e ofuscando completamente as outras ao seu redor.

Posso descrever a sensação da época em detalhes. Não é muito diferente do que acontece hoje. O frio na barriga parece crescer e se torna um abismo cada vez mais próximo de meus pés. A boca fica seca, nada a ver com sede, é como se toda água de meu corpo fosse bebida com gosto por alguma criatura maligna. Uma força absurda se manifesta, se espalha até meus pés e ali fica, como se eu pudesse saltar até às nuvens.

Então, sem que eu pense muito, me vejo correndo. E corro, corro, corro... as pernas praticamente se tornam meu tapete mágico, me levando para lugares que desconheço, sem que eu tenha qualquer controle quanto a direção a ser tomada.

A situação foi se repetindo, aconteceu no vestibular para Direito, onde perdi três anos tentando entrar, até optar por uma universidade que apenas pedia que eu pagasse a matrícula para ganhar a vaga. Não me entenda mal, não sou uma pessoa estúpida, mas ao sinal da menor dificuldade, ao invés de forçar meu cérebro a trabalhar contra isso, via esse mesmo impulso transferido para minhas pernas. E novamente quilômetros de lenta agonia e êxtase, até parar, exausto, muitas vezes em outras cidades.

Tentei aproveitar esse dom maldito. Me inscrevi em maratonas e, devido a meu excelente e involuntário condicionamento físico, disparava na frente. No entanto, bastava alguém se aproximar para o velho mal se manifestar. Perdia completamente o controle e saia do trajeto previsto, com minhas pernas me levando para lugares isolados, longe de qualquer ameaça.

Por três vezes tentei me casar. Cheguei perto de conseguir. Nas duas primeiras vezes, bastou que eu vestisse o terno para que a locomotiva do medo entrasse em ação. Devo ser a única pessoa do mundo a passar o dia inteiro do próprio casamento correndo. Na terceira vez, controlei o demônio maratonista com muito sacrifício e a ajuda de alguns amigos. Com anestesia local nas pernas, foi fisicamente impossível fugir. Calculamos tudo para que eu estivesse recuperado uns 15 minutos antes da cerimônia. Esquecemos do principal. A caminhada até o altar transformou-se em evento atlético que se estendeu até às 6h do dia seguinte.

Com muito custo, me formei após nove anos de faculdade. Obviamente, não estive presente na entrega dos diplomas. Como advogado, era brilhante nos bastidores, poderia livrar, em tese, a cara de qualquer um que defendesse com facilidade. Mas na hora de encarar o júri, o juiz e a promotoria, a tragédia jamais me dava trégua. Eu disparava para fora do tribunal, derrubando inclusive alguns seguranças pelo caminho. Graças a esse comportamento bizarro, como punição, vários juízes me colocaram na cadeia por alguns dias.

Conformado, decidi trabalhar cercado por quatro paredes apenas. Fiz minha fortuna como consultor jurídico de grandes corporações, ajudando-as, ironia das ironias, a fugir dos seus maiores problemas. Minha doença jamais me abandonou e foi se manifestando cada vez mais, ao menor sinal de perigo. Aconteceu em supermercado, bancos, na academia e até em pleno trânsito. Fui me tornando sozinho e distante da vida em sociedade.

Na última semana pensava ter encontrado a solução. Sem alimentar meu corpo por cinco dias, corri pela primeira vez voluntariamente. Queria ver como minhas pernas iriam fugir de si próprias, de sua própria destruição, talvez um confronto tão violento me livrasse da maldição. Corri até desabar e fui sentindo lentamente o calor desaparecer de meu corpo, cercado por pessoas que nunca tinha visto na vida. Minha tragédia enfim mostrou sua cara, mas preveria ter permanecido em minha triste ignorância. Nesses anos todos, minhas pernas foram meros instrumentos da covardia de meu espírito. E agora, finalmente, ele correria para sempre, sem que eu nada pudesse fazer a respeito.

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