Friday, March 02, 2007

Cegos

Quando a Igreja Evangélica ganha espaço na mídia, geralmente é por causa de algum escândalo. O tom de denúncia domina os noticiários e logo velhos estereótipos são reforçados. É claro que a mídia faz seu papel, apontando líderes religiosos realmente pilantras. No entanto, a maneira como são encarados os evangélicos não só nesses episódios, mas rotineiramente, é bastante curiosa. Para muita gente, parece inexplicável o crescimento desse contingente de fiéis, atualmente na marca dos 24 milhões de pessoas. Burrice, ignorância e fanatismo são características constantemente associadas aos adeptos das denominações evangélicas.

Cresci durante boa parte de minha infância dentro de uma dessas mesmas igrejas entendidas como parte do balaio dos tais crentes fanáticos. No entanto, o tempo passou e devo dizer que poucas vezes nos últimos anos compareci a uma dessas igrejas. Cheguei até a engrossar o coro preconceituoso contra certa parcela dos evangélicos.

Ontem, atendendo um convite sempre recorrente de minha avó, evangélica a quem muito admiro, decidi fazer uma visita à sua congregação, a Assembléia de Deus. Porém, dessa vez, entrei lá despido de preconceitos.

O lugar era simples, um pequeno salão abrigava os cerca de vinte alegres fiéis. Já na entrada, fui saudado com entusiasmo por pessoas que jamais havia visto na vida. Conversavam comigo com sinceridade no olhar, enaltecendo minha presença. Foi inevitável não me sentir acolhido e entre amigos.

Iniciado o culto, a esposa do pastor comandou com vigor a cantoria, composta por timbres roucos, agudos e graves, em sua maioria bastante desafinados. Isso não pareceu importante naquele momento, todos cantavam a plenos pulmões, como se aquela fosse a grande ópera de suas vidas. Não havia qualquer instrumento musical para acompanhá-los, as notas vinham diretamente do coração de cada um dos fiéis.

Em outro momento, duas meninas foram à frente para fazer um dueto. Para minha surpresa, cantaram muito bem, com uma emoção que muitas divas do pop apenas ensaiam ter.

È grosseiro o que vou escrever, mas é importante citar certos detalhes. Uma das meninas cantoras devia ter uns 16 anos, era bastante gorda, com roupas bem antiquadas e um problema de pele bem evidente, que causava manchas brancas que se espalhavam claramente por boa parte de sua pele. Qualquer adolescente que eu conheço não sairia de casa em tais condições.

Nada disso era importante. A cada agudo certeiro da menina, ficava evidente a empolgação de todos, demonstrada também com muitos aplausos ao final de cada uma das três músicas apresentadas. E ela sorria, cantava, agradecia pela chance de estar ali à frente, completamente exposta a um estranho como eu.

Essa apresentação vigorosa contrastou com a seguinte. Uma mulher, de olhar sempre baixo, pediu oportunidade para cantar. Sua voz era fraca e tinha dificuldade para manter a entonação da música. Na platéia nada mudou, o entusiasmo era o mesmo. A mulher deixou o palco improvisado sob aplausos calorosos, com um sorriso que se esforçou para ocultar.

Verdadeiros brados de vitória eram dados, as pessoas sorriam e batiam palmas. Logo depois, a esposa do pastor cedeu a palavra a uma senhora humilde. Ela começou a ler um pequeno trecho da Bíblia. Confesso que não lembro bem qual, não só por minha memória ruim, mas pela leitura truncada e cheia de erros, típica de pessoas com falhas de alfabetização. Quando ela terminou, nova surpresa, todos aplaudiam, inclusive eu.

O momento mais esperado da noite enfim chegava. O pastor se dirigiu à frente com um largo sorriso e Bíblia na mão. Com paixão, falou sobre a cura de um homem visto pela sociedade como alguém inferior, insignificante. Ninguém deixava aquele homem chegar perto de Cristo. Ele conseguiu sua cura literalmente no grito, abrindo espaço entre a multidão. Esse homem queria ver, era cego.

Não me deparei com ninguém cego naquele culto. Mesmo assim, acontecia ali um milagre de proporções bíblicas, se considerarmos os dias em que vivemos. Aquelas pessoas queriam algo mais importante do que ver, elas queriam ser vistas.

Isso tudo não explica apenas o sucesso de tantas denominações evangélicas. Explica também o fracasso de um mundo que debocha de algo mais sagrado do que a igreja, pastores, padres ou estátuas. O ser humano.

1 comment:

Anonymous said...

O ser humano precisa acreditar em algo ou se julga um incapaz. Inacreditável como esse mesmos evangelicos extraem dinheiro e acabam com revoltas em prisões, se envolvem com submundo e se acercam de milhares de pessoas em nome da fé. O homem aprendeu a não creditar-se, não crer em si, precisa de algo além humano para lhe dar forças, e qualquer um que lhe dê esse deslumbre, o encante com a proximidade da luz "espiritual" é seu pastor; o que está por trás desse humano "encantado" é só detalhe, não importa.