Tuesday, January 30, 2007

Sobre rafting e mantras

De vez em quando decido me sentir vivo. Então, ao invés de fazer algo de relevante na vida e assim conquistar algum orgulho próprio, decido fazer algo mais prático e mais fácil de ser utilizado como troféu em algum papo, a fim de ocultar minha mediocridade. Para isso, a cada passagem do cometa Halley, invento alguma atividade perigosamente inofensiva para impressionar ouvintes mais desatentos. No último ano, escolhi o rafting. Para tornar ainda mais notável a façanha, decidi que a realizaria no Rio das Antas, trajeto reconhecidamente tortuoso.

Olha, a coisa toda não era tão fácil assim. Mesmo em época de relativo baixo nível das águas, o bote parecia indomável. A cada pequena cascata o frio na barriga vinha e com ele a dificuldade em posar de garotão Ecosport. No entanto, o colete, o capacete e a presença do guia tornavam a aventura um mergulho em uma Jacuzzi. A bagunça podia ser grande, mas ninguém sentia medo pela própria segurança de verdade.

Nem mesmo nas três vezes em que o bote virou e todos foram jogados no rio, houve pânico. Na verdade, a turma até ria da situação. De perigoso mesmo nessa história, só alguns trechos de estrada ruim. Também devo admitir que, no momento das instruções dos guias, a expressão séria dos caras metia um certo medo. Exagero de minha parte, pensei na época. Tudo tinha sido muito tranqüilo e voltei com um pouco mais de bagagem egocêntrica e várias fotos do trajeto, prontamente oferecidas a módicas quantias pela equipe organizadora do passeio.

Nem lembrava mais disso tudo quando abro o jornal e vejo a notícia sobre a menina morta neste final de semana no mesmo tipo de passeio, mesmo rio e mesma equipe organizadora. Vejo ainda que ela era uma aventureira nata, acostumada não só ao rafting, mas também a diversas outras modalidades com igual ou maior carga de perigo. Como cenário para essas incursões, ela escolhia locais com natureza exuberante e, de preferência, nativa. Michele, uma guria de 26 anos, era muito querida por todos, praticava dança do ventre e adorava cozinhar pros amigos. O namorado ficou inconsolável, do jeito que ficam os caras que perdem pra sempre uma das poucas meninas por aí que você tem a certeza de chamar de minha menina até segurar pela última vez sua mão, mesmo que seja esta uma mão cheia de rugas. Michele cursava Direito em universidade federal e deveria se formar ano que vem. Amigos e colegas já encheram de mensagens carinhosas sua página no Orkut.

Nestes momentos, sou obrigado a acreditar em frases de efeito como “os bons morrem cedo” ou “a vida não é justa”. Me incomoda que eu comece a utilizar esses mantras de Diário Gaúcho pra entender não apenas a partida de pessoas decentes, mas também para justificar minha própria permanência nessas bandas.

2 comments:

Leo Pinho® said...

Excelente, Rafão!
Amiga sua, cara?

Anonymous said...

ótimo texto, parabéns. rafa, t confesso q fiquei 1 pouco deprimida no final: como assim justificar a sua permanência nestas bandas? q isso...