Thursday, November 23, 2006

O paradoxo da não adaptação

Vou lhe fazer uma pergunta e peço que você responda – mas responda mentalmente, caso contrário neguinho pode te mandar para um hospício por falar com um computador: quando você era criança, te contaram a história da formiga e da cigarra?

Eu sei... a resposta é sim. Essa é mais uma daquelas histórias doutrinantes, que buscam moldar as crianças dentro de um comportamento padronizado. Ao contrário do que normalmente se interpreta, o princípio de que o trabalho dignifica o homem não é o centro da moral. A questão toda está representada na figura da formiga e sua dedicação mecanicista no sentido de manter a ordem e a estrutura sobre a qual está montado todo o sistema de abastecimento de sua comunidade e que, por conseqüência, condiciona a sobrevivência de todos por lá. Ou seja, a moral é: ou você se enquadra ou, cedo ou tarde, vai acabar se fudendo.

Mas como impingir as regras de comportamento de uma formiga à realidade de uma cigarra? Essa é a questão que fica. De fato, a não-adaptação é um lance meio complicado e, normalmente, vagabundo sofre conseqüências por viver, ou melhor, ser compelido pela sua a essência/história a viver segundo outras regras. Mas qual é o mal disso, se ele está preparado e disposto a pagar o preço?

Contada sob o olhar da cigarra, a história toma contornos diferentes. Ao contrário da formiga, que vive segundo os desígnios do dever, a cigarra vive segundo o existir, o experimentar, o viver em si. Para ela, os mecanicismos do mundo funcional não funcionam e toda sua inquietação se encarrega da re-significação do mundo de normalidades cegas, segundo o seu olhar, sua sensibilidade. O mundo, que na mão da formiga se torna função, fazendo melhor a vida de todos – inclusive a da cigarra – na mão da cigarra, vira poesia.

Ela não queria se adaptar, aceitar cegamente aquilo que as regras estabelecidas a impunha porque deixaria de lado a essência do que ela era. Experimentou o que quis, no momento em que quis. Praticou o sexo, drogas e rock and roll com pulgas e percevejos – para quem compôs canções únicas, que Gilliard, evidentemente, interpretou como barulho digno de Baygon – viveu intensamente da caridade de quem a detestava, buscando todo amor que houvesse nessa vida. Morreu tão intensamente quanto viveu, nos acúmulos de seus erros e acertos, os quais estarão sujeitos ao julgamento de todos, mas e daí?

O resultado disso, sustentado numa sensibilidade única de uma vida louca vida, foram canções que ainda hoje embalam e geram significação para jovens formigas que vivem a idade da inconseqüência, da irresponsabilidade e que praticam o Rebel Yell.

Vida boa ou ruim eu não sei e não me sinto capaz de julgar. Somente bato palmas para as formigas que enxergaram além dos excessos e das idéias pré-concebidas sobre as cigarras e para as cigarras que vêem nas formigas e suas obras muito mais do que simples exemplos de uma vida mal conduzida, segundo a burocracia mecanicista.

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