Tuesday, October 24, 2006

Anomalias

Dança no Gelo se tornou uma atração de sucesso na Rede Globo ao apresentar os “famosos” aprendendo a dançar na pista abaixo de zero. Fausto Silva, com o cinismo que lhe é típico, exalta os esforços que garantem as apresentações de qualidade dos convidados. O desempenho realmente é bastante surpreendente, porém, as lesões, tombos e trapalhadas durante os ensaios ganham destaque em meio à ladainha do apresentador.

A histeria do público poderia ser entendida como resultado das belas coreografias apresentadas, porém, uma análise mais profunda detectaria ali mais uma manifestação do fenômeno olha-lá-mesmo-sendo-os-bons-eles-fazem-bobagem. A anomalia é antiga, seus primeiros registros datam do descobrimento da terrinha. Estudiosos dizem que a grande atração do povo indígena era se reunir à beira da praia para debochar dos portugueses que acreditavam estar descobrindo o país do futuro.

O fenômeno evoluiu e resultou em outras variações como a cópula-Cicarelli ou a dança da pizza. O estudo da bizarra manifestação atestou que sua eficácia obedece a três fatores básicos: o tamanho do fiasco, a livre vontade de cometê-lo e, mais importante, a capacidade de parecer que foi sem querer. Para bem ou mal da nação, isso não falha.

Exemplos? Vamos lá. O imenso fiasco de ser uma nação de analfabetos funcionais foi causado por inúmeros erro e políticas educacionais equivocadas. É uma situação muito cômoda manter as massas afundadas na ignorância, mas em qualquer discurso governista (seja o governo que for) você pode verificar o clima geral de que foi sem querer ter chegado a tal ponto.

Nos lares verde-amarelos a situação não é diferente. Pais passam cada vez mais vergonha com filhos abusados, sem qualquer educação ou respeito. Porém, a disputa entre o cômodo descaso e a educação correta dos filhos é uma lavada a favor do primeiro. No entanto, é comum ouvir por aí a célebre frase: “Não sei o que deu errado, ele sempre recebeu o melhor”.

O caso dos dançarinos de baixa temperatura à primeira vista é mais um da série. O suposto fiasco é em rede nacional, no programa de maior audiência no horário. Os participantes fazem de tudo para estar lá, eles de fato querem passar por aquilo tudo. E, para completar a tríade, aparentemente sem querer, eles caem, se machucam e até chegam a se lesionar com seriedade.

Mas essa é uma leitura errada. Esse já é um sintoma de outra manifestação: a artística. O sucesso do programa consiste em justamente mostrar (sem querer) que não existe fiasco no sacrifício e no esforço, nem vergonha na força de vontade e que a vitória só ocorre quando se quer muito. Quem dera cada brasileiro fosse contagiado ao menos uma vez na vida pelos sintomas da arte. Quem dera o público assistisse ao programa exclusivamente pela beleza daquele espetáculo. Na falta disso, a sede por sangue da audiência até pode ser aceita, desde que desperte a sede pela arte.

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